Embora não seja surpreendente o deputado e pastor Marco Feliciano (PSC-SP) propor na Comissão de Direitos Humanos e Minorais um projeto sobre a “cura gay”, tal fato não deixa de ser chocante. Afinal, como já foi dito inúmeras vezes, trata-se de uma Comissão definida institucionalmente como defensora dos Direitos Humanos e das Minorias. Logo, um espaço cujo razão de ser é a luta e o debate em torno da defesa dos diferentes modos de ser das pessoas, e não um espaço no qual luta-se pela negação e estigmatização desses modos de ser.
Entre outras coisas, o dito projeto pretende suspender a validade de uma resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP). Em 1999, o Conselho Federal de Psicologia publicou uma nova regulamentação com diretrizes éticas e protocolares com respeito à atuação dos profissionais da Psicologia no tocante ao entendimento da homossexualidade. Em resumo, os psicólogos e as psicólogas do Brasil passariam a atuar em conformidade com os parâmetros definidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e com o CID -10 (Código Internacional de Doenças), deixando de abordar a homossexualidade enquanto doença e patologia. Nesse sentido, desde então, o CFP desautoriza qualquer prática ou discurso dos profissionais de psicologia que aborde a homossexualidade como doença, desvio ou perversão, vedando assim qualquer iniciativa em termos de tratamento e cura.
Como se ver, o fundamentalismo religioso à la Feliciano é mais do que deboche gratuito ou a expressão isolada de alguém profundamente preconceituoso e intolerante. Ele se inscreve num projeto político conservador mais amplo no qual a religião cumpre um papel central na aglutinação das vontades e energias reacionárias, obscurantistas e preconceituosas. O fundamentalismo religioso, como eu tenho apontado em outros textos, avança no Brasil, expandindo-se dos púlpitos, dos programas de televisão, rádio e internet, para assumir e ganhar posições estratégicas na arena política. E se até pouco tempo suas forças eram mais reativas e opinativas, agora elas começam a ganhar corpo enquanto iniciativas políticas mais propositivas em torno da defesa dos seus interesses e visão de mundo unilateral.
O acúmulo de capital político e o grau de penetração e legitimação na esfera pública tornam o fundamentalismo religioso um ator político com cada vez mais poder de manobra, de negociação, de enfrentamento e de empoderamento; e, desse modo, capaz também de agir de maneira propositiva mesmo contra grandes resistências políticas e sociais – a continuidade de Feliciano na CDHM é um indicativo a esse respeito. Por isso, não vejamos no projeto, de autoria do presidente da bancada evangélica, deputado João Campos (PSDB-GO), uma atitude tresloucada e simplesmente estúpida. Trate-se do produto de uma força política que está se organizando a passos largos. Afinal, não é apenas contra o espírito do tempo que Feliciano e seus aliados estão indo contra, mas contra a resolução de uma entidade profissional e científica importante e contra parâmetros da OMS, os quais há mais de 20 anos retiraram a homossexualidade do rol de doenças mentais.
Passemos a outro ponto da análise. O que está em questão na noção de “cura gay”? Quais são os objetivos de tal prática? Vejamos.
Como ensinou Michel Foucault, a sexualidade é um campo de experiência em que diversos discursos intervêm de maneira produtiva visando o controle, a modelação moral, a definição de normas e limites, do proibido e do permitido etc.. Se é verdadeiro que, nas sociedades modernas, a sexualidade é constituída como o lugar privilegiado da investigação e da definição das identidades dos indivíduos, ela é, também, o espaço de normalização por excelência a partir do qual os poderes e os discursos agiram prolixa e irrefreavelmente em seu intuito de corrigir, disciplinar, normalizar os corpos, os prazeres, os desejos, as condutas segundos os mais diversos imperativos. Das mulheres histéricas aos onanistas passando pelas crianças e seus hábitos solitários à incontável variedade de “perversos”, os investimentos de poder sobre o sexo e a sexualidade não cessaram de rondar e incitar a vida dos homens e de seus prazeres.
A noção de “cura gay” deve ser entendida como mais um mecanismo de poder dentro desse processo de constituição do dispositivo da sexualidade em que a religião cristã e seus rituais, o direito e suas normas e os saberes médicos e suas categorizações desempenharam um papel central na produção do que Foucault chamou de uma verdadeira saturação sexual nas sociedades modernas ocidentais. Quer dizer, a invenção de um dispositivo de intensificação, multiplicação, fragmentação e especificação das formas de sexualidade e dos prazeres que o ocidente assistiu nascer e se consolidar no século XIX e que continua até os nossos dias. O seu objetivo? Instituir a normalidade no campo dos prazeres e das relações sexuais.
Entre os discursos que constituem a idéia de “cura gay” se destacam duas matrizes que, atualmente, se entrecruzam e se misturam, quais sejam; o discurso médico-terapêutico e o discurso religioso. Em ambas matrizes, a homossexualidade é um fenômeno que deve ser investigado e escrutinado em suas causas, como qualquer coisa que se “desviou” em razão da atuação de determinadas forças sobre a ordem natural ou divina do ser humano.
Nesse sentido, a homossexualidade seria, com efeito, um problema; um problema médico, um problema espiritual ou, mesmo, ambos. Se a homossexualidade é um problema que “desvia” o indivíduo de uma determinada normalidade e natureza, então ela deve ter causas. Alguns médicos e psicólogos defendem, inclusive, que a homossexualidade é o resultado do acúmulo de experiências negativas e traumáticas, tais como “abuso sexual na infância”, “dificuldade na relação com os pais”, “traumas em relação ao genitor do mesmo sexo”, etc.. Daí o desencadeamento de uma série de tendências psíquicas identificadas como patológicas e às quais a homossexualidade estaria irremediavelmente ligada; o suicídio, a depressão, a introversão.
Por sua vez, alguns Padres e, sobretudo, pastores pentecostais neopentecostais enxergam na homossexualidade o produto da ação de demônios e entidades malignas oriundas da adesão a práticas e rituais não-cristãos – leia-se de origem africana, umbanda, candomblé. O “desejo e os impulsos homossexuais” seriam, nesse caso, mais do que patológicos. Eles seriam, em última análise, malignos, fruto da possessão de entidades maléficas como “pomba-gira”, “exu”, entre outros. Não é novidade, embora não deixe de ser irônico, que o cristianismo, em suas mais diversas variações, alerte acerca do fato de que os “demônios são sexualmente transmissíveis”.
Ora, o que esses dois discursos produzem é a ideia de que existem “agentes” e “causas” identificáveis que explicariam o “homossexualismo” – como eles se referem. Se possui causas identificáveis, estejam elas na biografia do sujeito ou no mundo espiritual, então a homossexualidade pode ser curada. Desse modo, garante-se a possibilidade de que o indivíduo possa vir a ser “sarado” ou “liberto” de impulsos e desejos que ele ignora enquanto manifestação de causas e agentes perversos atuantes em seu psiquismo ou em sua alma.
A cura é uma maneira de fixar no indivíduo, de atar ao seu corpo e a sua biografia, a sua alma e ao seu psiquismo, uma especificidade aberrante, uma desordem e desequilíbrio, sejam estes últimos um “trauma” ou um demônio. Assim, almeja-se convencer o indivíduo a partir dos efeitos de verdade e de toda violência simbólica das quais estão investidos o discurso médico-terapêutico e religioso de que o indivíduo carrega alguma anormalidade dentro de si e da qual ele não é, em última análise, culpado. Por isso, o discurso da “cura gay” é um discurso que se apresenta como reparador e pretensamente altruísta. Em outras palavras, as “boas almas” da “cura gay” querem religar o indivíduo à normalidade da natureza e do sagrado.
Portanto, juntos, ambos os discursos sustentam que essas tais “causas” da homossexualidade produzem um corte em relação à natureza do ser humano ou em relação à Deus. O objetivo superficial da “cura” é claro e cristalino: reestabelecer esta relação que foi cortada por agentes perversos, ou seja, fazê-la retornar a sua normalidade, natural ou divina.
Assim, chegamos ao ponto principal e mais opaco do discurso da “cura gay”, qual seja: a manutenção da heterossexualidade como uma dimensão, desejo ou exercício da sexualidade não problematizada, não questionada, livre de diferença, portanto, tornada natural, normal, sadia, tanto em termos médicos quanto em termos divinos.
A “cura gay” é um mecanismo de poder e discursivo nesse dispositivo heteronormativo que precisa lançar mão da homossexualidade como problema, como doença, como coisa abjeta, como anormal para definir e legitimar o status privilegiado de que goza a heterossexualidade em nossas sociedades. Desse modo, a heterossexualidade e suas ambiguidades são esvaziadas de todo o conteúdo emocional, social e psicologicamente problemático. Nesse sentido, não há nela causas, nem traumas, nem homofobia ou violências. A heterossexualidade é completamente cândida.
Se somente a homossexualidade é encarada como objeto de conhecimento não é senão ao preço de que a heterossexualidade seja instituída e mantida como perspectiva de conhecimento a partir da qual se estuda, se mede e se avalia todas as outras formas de viver e experimentar a sexualidade e os prazeres. É isso que chamamos de heteronormatividade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário